segunda-feira, 28 de abril de 2008

As palavras irreparáveis

"Algures, quase sempre em ambiente de festa, talvez junto de um altar, ela e ele pronunciavam as palavras irreparáveis.
Tinham pensado nelas e no que significavam.
Tinham deixado que o tempo corresse um bom bocado depois da passagem daquele sopro mágico que os atraíra um para o outro.
Tinham-se conhecido melhor.
Tinham observado bem as reacções um do outro.
Tinham conversado muito.
Tinham construído - a partir dos planos de ambos - um único projecto.
Sabiam que o sopro mágico tinha apenas o papel de iniciar uma coisa nova; e que partiria depois de algum tempo.
Isso não os assustava.
Iam em frente, com esperança, com alegria.
E continuavam, depois de chegarem as crianças, contentes por a vida se complicar.
Conversavam, discordavam, rectificavam, pediam perdão.
Não à frente dos filhos - que tinham de se sentir seguros e não saberiam compreender; que poderiam julgar que o pai e a mãe discutiam.
Sucedia, normalmente, cedo ou tarde, o desencanto, a perda de sentido, a vontade de deixar tudo e procurar de novo, noutro lugar, um outro sopro mágico.
Mas tinham empenhado a palavra.
Tinham pronunciado as palavras que - dentro deles e à sua volta - não tinham retorno.
Ficavam.
Iam ficando.
Às vezes com prolongada dor, às vezes com um heroísmo de que não se julgavam capazes.
O tempo, porém, trazia, devagar, a calma, a alegria serena, a luz que parecia ter desaparecido.
Aprendiam que o amor também passa como que por uma conturbada fase de adolescência, até que vem a tornar-se maduro, se purifica, se fortalece e embeleza.
Depois ficavam tão contentes!
Tudo tinha sido útil, tudo tinha tido o seu papel.
Também a dor; também os esforços que pareciam inúteis; e as cedências e os silêncios e as humilhações.
Viam com toda a clareza como por coisa perdida tinham ganhado mil; como por cada lágrima derramada tinham oceanos de sorrisos; como por cada generosa tentativa, aparentemente frustrada, haviam recolhido cestos e cestos de consolação.
Olhavam e viam os filhos e os netos; a casa cheia de rebuliço; tranças louras; corridas atrás do gato; o indescritível prazer de voltar a contar as velhas histórias. "Avó, conta outra vez a da Cinderela"...; "Avô, é mesmo verdade que antes havia duas R.T.P.?"...
Viam, como num sonho, o passado e o futuro unidos por um nó que eram eles mesmos.
Um nó que nada tinha podido quebrar e permitira o futuro, novos seres, outros sonhos tão iguais aos que eles mesmos tinham sonhado.
Haviam suportado a tempestade e passado o Cabo; a Índia estava ali à frente dos olhos; o caminho, aberto para tantos e tantos cujos rostos eles nem sequer imaginavam.
Tinham tido um lugar no longo fio da vida; tinham sido alicerce e cimento; tinham as mãos cheias de sol.
Nunca morreriam....................
Pode parecer que estive aqui a descrever um quadro que me encantou num museu qualquer... mas não.
Sei muito bem que isto, só isto, é real e verdadeiro; que só isto é de hoje e de sempre."
Paulo Geraldo

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